quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Filosofia, linguagens e significações sociais


Prof. Dr. Wilson Alves de Paiva

            Embora existam linguagens no mundo animal, a fala humana é dotada de significados que vão muito além da simples transmissão de um conteúdo comunicativo. Diferente das comunidades não humanas, estritamente guiadas por códigos genéticos e impulsos instintivos, o agrupamento dos homens se distingue pela pluridimensionalidade de sua ação comunicativa, a qual sempre esteve intrinsecamente ligada à vida social e à produção cultural de um povo. A linguagem não é, por assim dizer, a transmissão de ideias, mas o descortinamento do real e o aprofundamento das relações intersubjetivas por meio de códigos linguísticos. O que, naturalmente, nos leva compreender que a linguagem utilizada por um povo, por um grupo ou por uma pessoa pode ampliar ou restringir as perspectivas sociais.
            Isto posto, é possível afirmar que estudar as linguagens é estudar as múltiplas formas de descodificação do real. Tal parece ser, portanto, o objetivo maior e mais sublime deste grupo: o de compreender melhor esse aspecto cultural, não apenas em suas estruturas, mas em sua semiótica e em suas relações com as vivências sociais. Talvez seja cedo para afirmar, mas uma das hipóteses que podem ser levantadas para uma investigação mais profunda é a de que a utilização da linguagem, não apenas em seu sentido visto pela ótica da análise do discurso, mas numa possível fenomenologia da ação comunicativa. Como isso só é possível por uma visão interdisciplinar, justifica-se a formação de um grupo como este, com pessoas de distintas áreas, voltado para compreender melhor esse fenômeno social em suas diversas e múltiplas significações.
            Para início de nossas atividades, não quero me reportar ao legado de Pierce (1839-1914), cuja lógica foi fundamental para entendermos a dimensão estrutural da linguagem, ou, poderíamos dizer, para lermos o mundo através da linguagem. Nem, tampouco, ao legado de Paulo Freire (1921-1998) cuja lógica é de que a leitura do mundo precede a leitura da palavra. Embora tenhamos, futuramente, que lançar mão dos conceitos piercianos para interpretar os signos em suas distintas manifestações; assim como apoderarmos dos conceitos freireanos para entender o uso ideológico e opressor dos mesmos, minha tentativa de contribuição teórica se reporta a Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).
            Rousseau não foi necessariamente um filósofo da linguagem e sim um filósofo político e educacional. Mas, como tantos outros iluministas, dedicou-se a outros campos do saber, incluindo a música e a linguagem. Sua obra nesse campo, o Ensaio sobre a origem das línguas, escrito por volta de 1759, é quase um apêndice de sua grande obra, o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Em ambos os escritos o esforço de Rousseau é o de demonstrar que a evolução cultural não cumpriu seu papel de promoção humana, mas, pelo contrário, promoveu uma degradação da vida social em todos os seus aspectos. Como objetivo de traçar a origem desses problemas, o filósofo genebrino teve que despir o homem de todos os traços culturais e sociais. Indo, dessa forma, muito além dos jusnaturalistas, Rousseau concebeu a hipótese argumentativa do estado de natureza, no qual o homem poderia ter vivido de forma puramente animal, antecedendo qualquer manifestação cultural, inclusive a linguagem. Malgrado as interpretações equivocadas, Rousseau nunca afirmou a existência de fato desse estado, nem, tampouco, defendeu o retorno a ela. Porém, mesmo como uma mera hipótese de trabalho, sua análise serve de parâmetros para pensarmos a vida em sociedade.
            Tomemos o caso da linguagem. Mas, primeiro, façamos uma resenha da obra: O autor inicia afirmando que é a palavra que distingue os homens dos animais e o uso que se faz dela distingue os homens entre os homens. Contra o mito da língua adâmica, a linguagem humana é convencional, progressiva e elaborada a partir das necessidades de cada grupo e região. De início, figurativa, onomatopaica e circunstancial, os signos foram sendo elaborados pelos intercursos humanos não apenas em suas necessidades imediatas, como também nos relacionamentos passionais, sejam conflituosos ou amorosos. Assim, a linguagem foi-se expandido conforme mais complexa era a expansão das relações sociais. Portanto, a escrita foi fruto dessa expansão e da necessidade de melhor comunicação. Paradoxalmente a escrita significou um aprimoramento e, ao mesmo tempo, um retrocesso na comunicação entre os homens, pois o signo escrito, colocado no lugar da fala, distanciou os homens e ocultou as nuances, os acentos e as expressões línguísticas dotadas, evidentemente, de sentimentos e intenções várias. Mais uma vez, é preciso dizer, tendo em vista os equívocos interpretativos, que Rousseau não defendeu o retorno a uma sociedade oral, mas lamentou o que a pobreza das línguas modernas, deixando a excessão para a língua italiana – segundo ele, doce e musical.
            Quando Rousseau descreve liricamente a idade do ouro, tomando como exemplo um trecho do Ensaio, que diz: “Reunem-se em torno de uma fogueira comum, aí se fazem festins, aí se dança. Os agradáveis laços do hábito aí aproximam, insensivelmente, o homem de seus semelhantes e, nessa fogueira rústica, queima o fogo sagrado que leva ao fundo dos corações o primeiro sentimento de humanidade”, podemos afirmar que a descrição não se diferencia muito das obras de um Carlos Rodrigues Brandão e de outros antropólogos culturalistas que buscam resgatar os valores comunitários presentes em distintas regiões brasileiras. As quadrilhas, os folguedos e outras tantas manifestações folclóricas estão aí como linguagens telúricas e signos de um passado do qual não podemos desvencilhar. Não seria, talvez, um dos objetivos deste grupo o de estudar e divulgar essas culturas, salientando-as como linguagens perdidas, mal interpretadas e muitas vezes silenciadas? Por outro lado, uma vez divulgadas, será que essas manifestações não unirão as gerações e não proporcionarão uma ligação maior entre a juventude e seu próprio passado? Se assim for, Rousseau está certo quando diz (loc. cit.): “Sob velhos carvalhos, vencedores dos anos, uma juventude ardente aos poucos esqueceu a ferocidade”.
            O verso, o canto e a palavra têm origem comum e, portanto, podem ser classificados como língua. Porém, não se pode esquecer que a paixão antecede a razão e a música, por mais erudita que seja, jamais poderá tocar o coração se não representar os verdadeiros sentimentos humanos. Como descreve Rousseau, ao fim de seu Ensaio, a multidão de regras e o emprego excessivo da razão degenerou a música. Por um lado, o tecnicismo a separou da voz, da palavra e distanciou-se da natureza, tornando-se amoral; Por outro, a degeneração maior foi o emprego da música para expressar apenas os sentimentos da nobreza, para enaltecer o luxo e diferenciar os homens entre os “eruditos” e os “ignorantes”. O que para Rousseau é imoral. Daí, a música e a fala viraram verborragia, sermões e discursos ideológicos, tal como previu Rousseau, tal como descreveram Althusser e Foucault.
            A atualidade de Rousseau é impressionante quando diz (p. 331): “As  sociedades tomaram sua última forma: nela nada mais se muda senão com o canhão e com a moeda, e como nada se tem a dizer ao povo, a não ser: daí dinheiro, diz-se por meio de cartazes nas esquinas ou de soldados nas casas. Para tanto não se precisa reunir ninguém; pelo contrário, convém manter os súditos esparsos – tal a primeira máxima da política moderna”. Em outras palavras, a política moderna se fundamenta no discurso ideológico, na utilização de signos arbitrários para engodar o povo e maquiar a realidade. Na lógica das linguagens, o mundo televiso seria, numa perspectiva bem rousseauniana, o extremo do afastamento entre os homens e na ruptura entre o povo e seu governo. O contrário deveria ser uma relação política direta, na qual o governante não se valeria de marqueteiros, discursos pré-concebidos, mas de sua própria fala, de sua gesticulação, de sua índole discursiva e de sua capacidade de dar respostas aos problemas que vivenciamos. Nas relações sociais, o contrário deveria ser uma relação humana mais próxima, mais autêntica, mais amiga e mais romântica.
Lembrando Rousseau, o que “arrancou as primeiras vozes” foram a necessidade e as paixões. A necessidade e o sentimento vieram antes do raciocínio e, portanto, devem guiá-lo. “A princípio se falou pela poesia”, pelo canto, pela melodia e pelas reais necessidades de comunicação e trocas sociais. Resgatar isso não significa uma incursão por uma proclamada “utopia rousseauniana”, mas resgatar valores perdidos, avivar sentimentos e proporcionar espaços significativos de trocas culturais.
Tal parece ser o objetivo de nosso grupo e nossa Academia. Entender as diversas linguagens, suas relações com as vivências sociais do passado e do presente. Os significados talvez não sejam mensuráveis, pelo menos numa perspectiva positivista, tecnicista, mas não deixarão de ter seu valor na produção artística de cada um de nós, bem como na vida das pessoas com as quais nos relacionarmos no intercurso de nossas produções. É esse, basicamente, o trabalho do intelectual.
Além das contribuições teóricas que cada um de nós possa trazer, o grupo possui um campo de estudo bastante diversificado. Como Rousseau pensou a linguagem a partir do afastamento da natureza, o GEP LINGUAGENS E PERSPECTIVAS SOCIAIS poderia iniciar  suas investigações no âmbito da produção marginal, circunscrevendo sua pesquisa em torno das escritas populares, produzidas nos cantos das fiandeiras, das benzedeiras, das farinheiras; assim como na literatura cantada das modas de viola, elaboradas atualmente na zona urbana e rural de Trindade. Em seguida, poderíamos promover um encontro eles alguns desses “poetas” com estudantes das escolas de Ensino Médio para um colóquio, ou um café sobre as diversas linguagens do homem do campo e de populações urbanas marginais.
            O encontro talvez não seja sob um “velho carvalho”, como descreveu Rousseau, mas provavelmente sirva para diminuir os conflitos etários, bem como provocar na juventude um pouco mais de sensibilidade, diminuindo assim sua ferocidade e ignorância.

Um comentário:

  1. Muito bom seu texto, Wilson. Gostei muito da discussão de Rousseau. Porém, um ponto digno de revisão seria, e que supostamente suscita uma paradoxo no seu texto, "....bem como provocar na juventude um pouco mais de sensibilidade, diminuindo assim sua ferocidade e ignorância."
    Acho esse final conflitante e antagônico por você ter citado a ideologia freireana em que pressupõe uma infinidade de letramentos possíveis para os indíviduos à luz do conhecimento de munto de cada um. Isso significa que os nossos letramentos não podem ser melhores nem piores do que outros, e por isso não conduz ninguem a ferocidade ou ignorância (ou a deferocidade e des-ignorância.
    Será que eu entendi algo errado em seu texto? Pode ser, e não duvido disso, porque as leituras são meras interpretações e que ora estão certas e ora estão completamente erradas...
    Forte abraço!

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